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À véspera de um golpe

A véspera de um golpe de Estado é só um dia comum. Um dia como o de hoje. Um dia como 30 de março de 1964. Entre o ontem e o agora, nada, absolutamente nada, é só mera coincidência

Dawisson Belém Lopes, para Headline
#POLÍTICA11 de nov. de 224 min de leitura
Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro participam de protesto para pedir intervenção federal em frente ao quartel do 63º Batalhão de Infantaria em Estreito, na região metropolitana de Florianópolis, em Santa Catarina, em 2 de novembro. Foto: Anderson Coelho/AFP
Dawisson Belém Lopes, para Headline11 de nov. de 224 min de leitura

A véspera de um golpe de Estado pode ser data absolutamente ordinária. Imagine uma segunda-feira indigesta após um domingo de esbórnia. Um dia singelo, chuvoso ou ensolarado, preguiçoso ou agitado, entre os vinte ou trinta mil que um adulto longevo viverá.

Naquela segunda-feira, 30 de março de 1964, véspera do golpe militar no Brasil, o então presidente da República, João Goulart, compareceu ao Automóvel Clube, no Rio de Janeiro, para falar a militares. Era a posse da nova diretoria da associação de sargentos.

A receita do bolo já estava desandando, é bem verdade, mas Jango entendia ser possível promover uma reviravolta. Seu discurso, preparado sob medida para a audiência, refletia tal estado de espírito. Salvar a lavoura era preciso.

Na véspera do golpe, percebam a coincidência, o presidente – que seria deposto no dia seguinte – denunciava a minoria privilegiada de brasileiros que, de forma explícita, se opunha à integração de milhões de compatriotas à vida política, econômica e social.

Goulart aludia ao clima de conspiração e às tramas (eu ouvi “fake news”?) que envenenavam o ambiente, criando animosidade e minando a unidade nacional. Eram, conforme o presidente, obra de “inimigos da democracia” e, coincidência suprema, dos defensores de um golpe de Estado – ou, no registro técnico da época, do estado de sítio (alguém disse “intervenção federal”?)

Naquele histórico 30 de março, Jango também se queixou dos “fariseus” (que coincidência terminológica!) que, arvorando-se em defensores da Constituição, rasgavam e enterravam a Carta Magna “no túmulo do fascismo”. As referências textuais entre aspas, notem novamente a magnífica coincidência, são do ex-presidente, não minhas.

Em nome do sentimento cristão do povo

Os opositores do regime, segundo Goulart, falavam imprudentemente em nome dos sentimentos cristãos do povo brasileiro, e – santa coincidência – acusavam o presidente da República, o arcebispo do Recife, o cardeal paulista e até o papa de profanar ideais religiosos.

O presidente do Brasil sustentava, diante do grupo de soldados, que vigorava na América Latina a tática de clamar por reformas estruturais, mas de tachar de “comunistas” os líderes que as pusessem em prática. Soa muitíssimo familiar, essa narrativa.

Na véspera do golpe, Goulart ainda relembrou a medida de nacionalizar refinarias de petróleo. A Petrobrás, disse o então presidente, tornara-se fonte de ganhos assombrosos e remessas ilícitas; não surpreendia, pois, que o empresariado derrotado e descontente se voltasse violentamente contra o governo.

Um mar de incríveis coincidências

Num mar de incríveis coincidências entre o ontem e o agora, nada, absolutamente nada, é só mera coincidência. O roteiro do golpe de 1964 é adaptado, quando não literalmente apropriado, pela linhagem bolsonarista do tempo corrente. Golpes de Estado têm, sim, memória genética.

Inconformados com o resultado da eleição, apoiadores do presidente derrotado, Jair Bolsonaro, organizaram bloqueios e atos antidemocráticos em frente à quarteis. Foto: Felipe Paiva/HDLN
Inconformados com o resultado da eleição, apoiadores do presidente derrotado, Jair Bolsonaro, organizaram bloqueios e atos antidemocráticos em frente à quarteis. Foto: Felipe Paiva/HDLN

Os arruaceiros de 2022, esses que ora fazem bloqueios de rodovias e rogam aos quartéis um gesto salvacionista, a fim de – surpresa, surpresa – libertar o Brasil do comunismo, são os filhos, os netos e os bisnetos do ancestral “movimento civil-militar” – alcunha eufemística que simpatizantes do golpe de 64 tentam emplacar.

Da mesma maneira, os generais, almirantes e brigadeiros do presente eram, nos idos de 1960 e 1970, os recrutas das Forças Armadas do Brasil. Cresceram profissionalmente sob o signo da ditadura e, só muito tardiamente, fizeram a sua conversão ao constitucionalismo. Se é que algum dia se converteram.

Vem golpe por aí? É improvável. As circunstâncias domésticas e, sobretudo, externas – os humores da comunidade internacional de nações – mudaram desde o auge da Guerra Fria. O preço da ruptura institucional, num momento imediatamente posterior à realização de eleições democráticas no Brasil, ficou alto demais.

Ainda assim, e por tudo isso, o golpismo brasileiro segue exuberante.

* Dawisson Belém Lopes é professor de Política Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e "academic visitor" (2022-2023) do The Latin American Centre da Universidade de Oxford, Reino Unido

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