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À véspera de um golpe
A véspera de um golpe de Estado é só um dia comum. Um dia como o de hoje. Um dia como 30 de março de 1964. Entre o ontem e o agora, nada, absolutamente nada, é só mera coincidência
Dawisson Belém Lopes, para HeadlineA véspera de um golpe de Estado pode ser data absolutamente ordinária. Imagine uma segunda-feira indigesta após um domingo de esbórnia. Um dia singelo, chuvoso ou ensolarado, preguiçoso ou agitado, entre os vinte ou trinta mil que um adulto longevo viverá.
Naquela segunda-feira, 30 de março de 1964, véspera do golpe militar no Brasil, o então presidente da República, João Goulart, compareceu ao Automóvel Clube, no Rio de Janeiro, para falar a militares. Era a posse da nova diretoria da associação de sargentos.
A receita do bolo já estava desandando, é bem verdade, mas Jango entendia ser possível promover uma reviravolta. Seu discurso, preparado sob medida para a audiência, refletia tal estado de espírito. Salvar a lavoura era preciso.
Na véspera do golpe, percebam a coincidência, o presidente – que seria deposto no dia seguinte – denunciava a minoria privilegiada de brasileiros que, de forma explícita, se opunha à integração de milhões de compatriotas à vida política, econômica e social.
Goulart aludia ao clima de conspiração e às tramas (eu ouvi “fake news”?) que envenenavam o ambiente, criando animosidade e minando a unidade nacional. Eram, conforme o presidente, obra de “inimigos da democracia” e, coincidência suprema, dos defensores de um golpe de Estado – ou, no registro técnico da época, do estado de sítio (alguém disse “intervenção federal”?)
Naquele histórico 30 de março, Jango também se queixou dos “fariseus” (que coincidência terminológica!) que, arvorando-se em defensores da Constituição, rasgavam e enterravam a Carta Magna “no túmulo do fascismo”. As referências textuais entre aspas, notem novamente a magnífica coincidência, são do ex-presidente, não minhas.
Em nome do sentimento cristão do povo
Os opositores do regime, segundo Goulart, falavam imprudentemente em nome dos sentimentos cristãos do povo brasileiro, e – santa coincidência – acusavam o presidente da República, o arcebispo do Recife, o cardeal paulista e até o papa de profanar ideais religiosos.
O presidente do Brasil sustentava, diante do grupo de soldados, que vigorava na América Latina a tática de clamar por reformas estruturais, mas de tachar de “comunistas” os líderes que as pusessem em prática. Soa muitíssimo familiar, essa narrativa.
Na véspera do golpe, Goulart ainda relembrou a medida de nacionalizar refinarias de petróleo. A Petrobrás, disse o então presidente, tornara-se fonte de ganhos assombrosos e remessas ilícitas; não surpreendia, pois, que o empresariado derrotado e descontente se voltasse violentamente contra o governo.
Um mar de incríveis coincidências
Num mar de incríveis coincidências entre o ontem e o agora, nada, absolutamente nada, é só mera coincidência. O roteiro do golpe de 1964 é adaptado, quando não literalmente apropriado, pela linhagem bolsonarista do tempo corrente. Golpes de Estado têm, sim, memória genética.
Os arruaceiros de 2022, esses que ora fazem bloqueios de rodovias e rogam aos quartéis um gesto salvacionista, a fim de – surpresa, surpresa – libertar o Brasil do comunismo, são os filhos, os netos e os bisnetos do ancestral “movimento civil-militar” – alcunha eufemística que simpatizantes do golpe de 64 tentam emplacar.
Da mesma maneira, os generais, almirantes e brigadeiros do presente eram, nos idos de 1960 e 1970, os recrutas das Forças Armadas do Brasil. Cresceram profissionalmente sob o signo da ditadura e, só muito tardiamente, fizeram a sua conversão ao constitucionalismo. Se é que algum dia se converteram.
Vem golpe por aí? É improvável. As circunstâncias domésticas e, sobretudo, externas – os humores da comunidade internacional de nações – mudaram desde o auge da Guerra Fria. O preço da ruptura institucional, num momento imediatamente posterior à realização de eleições democráticas no Brasil, ficou alto demais.
Ainda assim, e por tudo isso, o golpismo brasileiro segue exuberante.
* Dawisson Belém Lopes é professor de Política Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e "academic visitor" (2022-2023) do The Latin American Centre da Universidade de Oxford, Reino Unido