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Análise – Café e chá, por favor

Num peculiar entroncamento da História, em que o velho não quer morrer e o novo não consegue nascer, o país mais “ocidentalizado” dos BRICS quer servir de ponte entre ricos e pobres, americanos e chineses, G7 e G77

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#INTERNACIONAL11 de out. de 235 min de leitura
Da esquerda para a direita: Os presidentes da China, Xi Jinping, do Brasil, Luiz Inacio Lula da Silva e da África do Sul, Cyril Ramaphosa, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, e o ministro de Relações exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, durante a Cúpula do Brics, em Johannesburg, África do Sul. Foto: Alet Petrorius/Pool/AFP
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias11 de out. de 235 min de leitura

Ao longo dos últimos dias, uma questão compareceu com relativa frequência nos noticiários e páginas de opinião: quem deverá, afinal, assumir a liderança do Sul Global? Será a China, com suas cifras econômicas inigualáveis, ora elevada à condição de principal rival dos Estados Unidos? Talvez a Índia, potência emergente ungida por Washington, campeã mundial nos aspectos demográficos? Ou então a Rússia, inimiga pública número um da OTAN, armada até os dentes de ogivas nucleares?

A hipótese menos óbvia – portanto, passível de apreciação mais aprofundada neste artigo – é o Brasil, aquele Estado nacional que, na clássica definição de Ramiro Saraiva Guerreiro, nunca contou com “excedentes de poder”. Este Brasil de Lula III, que vai aos púlpitos das organizações internacionais e consegue capturar a atenção de líderes globais ao Norte e ao Sul do globo, a Leste e a Oeste do planisfério, faz por merecer o benefício da dúvida. Não seria ele uma alternativa palatável e diplomaticamente viável para ancorar as expectativas dos diferentes perfis de atores internacionais? A ver.

É bem mais do que a geografia física

Entender os posicionamentos da República Federativa do Brasil na cena internacional contemporânea pede levar em consideração os dois tradicionais eixos de conotação geopolítica – Norte/Sul e Leste/Oeste – e as formas como esses interagem.

Norte e Sul globais, sabemos, não têm correspondência estrita com as medidas de latitude dos países no mapa-múndi. É referência feita, antes, aos recursos historicamente acumulados pelas sociedades nacionais e aos modos como os Estados se comportam nas relações internacionais. Trata-se de eixo que vem sendo objeto de reflexões na academia e de formulações do corpo diplomático desde quase sempre.

A autoimagem do Brasil no concerto das nações é de país grande que busca incessantemente, pelo caminho do desenvolvimento socioeconômico, a sua redenção. Conveio que, em boa parte do século XX, tenhamos perseguido ativamente as agendas desenvolvimentistas, no âmbito das Nações Unidas e outros foros, como o G77 e a UNCTAD. Na dimensão regional, o Brasil também se fez, durante a segunda metade dos 1900, promotor da noção de que os pobres deveriam unir-se em busca de seus objetivos. ALALC, ALADI e Mercosul fazem, por diferentes vias, o mesmo tipo de apelo.

Se a identidade internacional do Brasil é bem definida em termos de pobres vs. ricos, dificuldades para o enquadramento no eixo horizontal – Leste e Oeste – começam a revelar-se. Embora, objetivamente, o Brasil tenha sido colonizado por europeus, isso jamais lhe rendeu plena incorporação ao “clube de vantagens” do Ocidente. Apreendemos, em larga medida, os valores do conquistador – cristianismo, língua neolatina, instituições jurídicas romano-germânicas, economia de mercado, democracia representativa (eu sei, eu sei...). A despeito disso, temos sido percebidos, na mais autocomplacente hipótese, como o “outro Ocidente” – mais pobre, mais enigmático, diferente, ainda atribulado. Na menos concessiva, somos encarados como civilização exótica, feita de matéria outra que a europeia/ocidental.

A rigor, é importante resgatar que, apesar de fomentar debates como aquele sobre a Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), o Estado brasileiro jamais se afastou do campo magnético do Ocidente. Nunca integrou, por exemplo, o Movimento Não Alinhado, filhote da Conferência de Bandung de 1955. Em conjunturas críticas – como as Guerras Mundiais, a Guerra Fria e o 11 de Setembro –, nossa máquina diplomático-militar tendeu para a direção Oeste. Nossos maiores parceiros comerciais – Portugal, e depois a Inglaterra, e depois os Estados Unidos – exerceram, em diferentes momentos históricos, uma ascendência irresistível sobre nós.

O alinhamento presumido ao Atlântico Norte foi, até bem recentemente, uma espécie de fait accompli da nossa política externa. Não havia, afinal, razões robustas para interrogá-lo. Mesmo quando se negava o estatuto de país ocidental ao Brasil, o “ocidentalismo de facto” logo era desembainhado por diplomatas e membros da elite política local. O problema é que as circunstâncias fáticas mudaram – e mudaram seriamente.  

Ode à ambivalência

A ascensão desenfreada da China trouxe importante consequência palpável, em 2009, para a relação bilateral com o Brasil: o país asiático passou a ser – e mais e mais, desde então – o nosso principal sócio comercial. A julgar pelo que se passou com os Estados Unidos, ainda no início do século XX, era de se esperar que a transformação nas bases materiais da política exterior brasileira reverberasse nas demais esferas econômicas, políticas e militares. Lenta e ainda timidamente, essa transformação está em curso.

Quando os Estados Unidos pegaram o bastão de mãos inglesas, na primeira década do século XX, e passaram a exportar para cá os seus valores, à proporção que importavam o nosso café, deu-se profundo deslocamento das lealdades diplomáticas da Europa para a América do Norte. Em pleno século XXI, o enredo é outro. Se a China avança aos pouquinhos, os EUA não retrocedem tanto. Seguem sendo o país que mais investe financeiramente e, para todos os efeitos, como a última eleição presidencial tratou de mostrar, quem mais influencia a política nacional brasileira.

Num peculiar entroncamento da História, em que o velho não quer morrer e o novo não consegue nascer, o país mais “ocidentalizado” dos BRICS quer servir de ponte entre ricos e pobres, americanos e chineses, G7 e G77. É tão difícil como andar na corda bamba sem rede de proteção – vide a situação na Ucrânia. Os tempos correntes, todavia, parecem propícios para animais híbridos como o Brasil. Que panda, que nada. A moda, agora, é ser ornitorrinco.

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