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Com Lula, o "não alinhamento ativo" ganha corpo

As ideias não morrem, e o Movimento Não Alinhado, criado na Indonésia, em 1955, terá servido de inspiração para um "remake", cujo maior protagonista hoje habita o Planalto Central

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#POLÍTICA17 de fev. de 234 min de leitura
Lula fala a repórteres do lado de fora da Casa Branca após uma reunião bilateral com o presidente dos EUA Joe Biden, em 10 de fevereiro, em Washington. Foto: Anna Moneymaker/Getty Images/AFP
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias17 de fev. de 234 min de leitura

“Não participaremos de nenhuma Guerra Fria. Seremos ativos e altivos”, disse um autoconfiante Luiz Inácio Lula da Silva ao responder pergunta de Raquel Krähenbühl, da TV Globo, durante a sua recente passagem por Washington, capital dos Estados Unidos.

A jornalista tentava extrair do mandatário qual seria, na hipótese de aumento das pressões por alinhamento internacional, o lado que o maior país da América do Sul tomaria – se americano ou chinês. O presidente Lula limitou-se a dizer que, enquanto a República Popular da China era o principal parceiro comercial do Brasil, os Estados Unidos ocupavam o segundo lugar no pódio.

Lula também fez um apelo a que outros grandes países do Sul Global – Índia, Indonésia, Turquia, México, Argentina – fossem mais ouvidos nos grandes foros de segurança e na governança do meio ambiente. Ainda instou europeus a considerarem as potencialidades de uma aliança estratégica com a América Latina, num momento cada dia mais desafiador e, no relativo à economia, voltado para a Ásia.

Para bom entendedor, a doutrina de política externa lulista para o seu terceiro mandato presidencial fora ali desenhada.

De Bandung a Brasília

Há quase 70 anos, na cidade de Bandung, capital da ilha de Java, era oficialmente fundado o Movimento Não Alinhado (MNA), célebre agrupamento dos desalinhados – ou seja, aqueles Estados que não pretendiam ficar sob o guarda-chuva estadunidense ou soviético. Entre as lideranças do time, figuravam a Índia de Nehru, a Iugoslávia de Tito, a Cuba de Fidel, a Gana de Nkrumah, o Egito de Nasser e, claro, a Indonésia do anfitrião Sukarno.

O Brasil, mesmo que entoasse timidamente um discurso terceiro-mundista na condução das relações econômicas exteriores, jamais arredou o pé do campo magnético de Washington e do Ocidente, particularmente nos assuntos securitários. Uma “vocação” que refletia, naturalmente, as lealdades e identidades da nossa alta elite dirigente. Essa era, de resto, a realidade da maioria da América Latina.

É difícil avaliar, depois de todos esses anos, o saldo do Movimento Não Alinhado. No tempo histórico em que foi concebido, ele esteve preocupado prioritariamente com a descolonização e a garantia de que a soberania territorial de seus membros, africanos e asiáticos em maioria, fosse respeitada. Ainda no momento corrente, o MNA trava batalhas pela descolonização – seja no Saara Ocidental, seja em Porto Rico. Todavia, as ideias não morrem, e o MNA terá, com boa probabilidade, servido de inspiração para um revival cujo maior protagonista, quer me parecer, ora habita o Planalto Central.

Expressão forjada em 2020 pelos politólogos latino-americanos Jorge Heine, Carlos Fortín e Carlos Ominami, o Não Alinhamento Ativo (NAA) parte do diagnóstico de crescente e contínua bipolarização do mundo nas décadas recentes, em aparente reedição, do ponto de vista estrutural, das circunstâncias que embalaram a Guerra Fria. Mas como nada nesta vida é mera repetição do que foi anteriormente vivenciado, o contexto da terceira década do século XXI pede revisões e atualizações do ideário de 1955.

A visita aos Estados Unidos foi a primeira do presidente Lula da Silva desde que foi eleito presidente do Brasil. Foto: Anna Moneymaker/Getty Images/AFP
A visita aos Estados Unidos foi a segunda viagem internacional do presidente Lula desde que foi eleito presidente do Brasil. Foto: Anna Moneymaker/Getty Images/AFP

Em lugar de descolonização dos territórios, entra o debate sobre desenvolvimento e fronteira tecnológica; em vez de política nuclear e corrida às armas, o meio ambiente ocupa o centro da mesa; para além das guerras por procuração, resgata-se a centralidade das cadeias globais de suprimento.

A virtù reencontra a fortuna

Lula foi a Sharm El-Sheik, no tão simbólico Egito, e pôs em relevo o compromisso brasileiro com a gestão ambiental. Visitou a Argentina na primeira agenda internacional após o empossamento, indicando maior integração entre os dois países. Dobrou a aposta regional na CELAC (Comunidade dos Estados de América Latina e Caribe), outrora bastante debilitada, e na OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), antes dormente.

O presidente brasileiro consultou-se com o homólogo francês, ao telefone, e com o chanceler alemão, em pessoa. Para não causar cizânia, tratou de agendar visitas consecutivas a Joe Biden e Xi Jinping. Sugeriu um “clube da paz” para levar a estabilidade à Ucrânia – sem deixar de relembrar a polêmica tentativa de induzir o Irã, em 2010, a um arranjo de cooperação nuclear. Elaborou planos para a proteção da democracia e o combate às fake news. Isso tudo, sempre bom registrar, em pouco mais de 2 meses.

Entusiasta da diplomacia presidencial, o chefe de Estado brasileiro parece ter captado o espírito do seu tempo. E não há, no mundo atual, outro líder em condições de desempenhar o papel principal no "remake" de Bandung. Decididamente, a ideia abstrata do NAA ganhou um corpo para chamar de seu.

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