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Discordar é normal, Juracy

Há gente com saudade dos tempos em que, de forma contraproducente e até constrangedora para o Brasil, as posições diplomáticas do Planalto coincidiam em absoluto com as da Casa Branca

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#INTERNACIONAL6 de ago. de 235 min de leitura
Arte: Carol Macedo/Headline
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias6 de ago. de 235 min de leitura

Chanceler por curto período da história republicana, o ex-governador baiano Juracy Magalhães protagonizou um dos lances mais emblemáticos da política externa brasileira. Nomeado embaixador do Brasil em Washington, logo após o golpe militar de 1964, Magalhães então formulou que, por termos lutado duas guerras mundiais ao lado dos americanos, e isso jamais ter trazido arrependimentos ao país, estaríamos diante de uma cristalina verdade histórica: “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil”.

A frase virou meme avant la lettre – invocado toda vez que se queria insinuar pouco comprometimento de alguém com o interesse da própria pátria. O Brasil de 1964 era marcado por embates entre liberais interdependentistas e nacionalistas autonomistas. Os militares que haviam assumido o poder só queriam saber de “corrigir rumos”, realinhando radicalmente a política externa ao que emanava dos EUA. Como ironizou certa vez o tarimbado diplomata Rubens Ricupero, quando não se sabia a posição do Brasil acerca de determinado assunto, bastava olhar para o lado e ver como votava o delegado americano.

Corta para 2023. Ao longo dos últimos meses, abundaram na imprensa brasileira textos, originais ou cópias de formulações estrangeiras, cujo mote é o alegado “antiamericanismo” ou “antiocidentalismo” de Lula III. Os motivos da rotulação abraçam aspectos tão diversos quanto a defesa de um sistema financeiro não centrado no dólar americano, a fala sobre as culpas de EUA e Europa em fazer perpetuar a guerra russo-ucraniana, a recusa brasileira em aderir às sanções à Rússia e ceder armamentos à Ucrânia, ou a simples visita do presidente da República à China, em abril do corrente.

Dá até para arriscar um diagnóstico atrevido: há gente com saudade dos good old times em que, de forma contraproducente e até constrangedora para o Brasil, as posições diplomáticas do Planalto coincidiam em absoluto com as da Casa Branca. Juracy ainda vive.

Uma longa caminhada de 200 anos

Os primeiros anos de existência soberana do país foram plasmados por relações assimétricas com os europeus. O jogo começou a mudar no século 20, quando os EUA emergiram como potência mundial. No início dos 1900, o gigante da América do Norte tornou-se nosso maior parceiro comercial, além de grande importador do café. Estava pavimentado o caminho para a aliança especial com o Brasil.

Juracy tem razão num ponto, conceda-se: um dos momentos mais críticos da aliança hemisférica foi mesmo a 2ª Guerra Mundial. Depois de flertar com os alemães do III Reich, Getulio Vargas alinhou-se de modo derradeiro aos EUA. O chanceler Oswaldo Aranha – que, depois, romperia com Vargas – foi um dos arquitetos desse alinhamento. Como sabemos hoje, parte importante de nosso parque industrial, a siderurgia em especial, guarda relação genética com os aportes estadunidenses no pré-guerra. As Forças Armadas do Brasil – em especial a Força Aérea Brasileira, criada nos anos 1940, e o Exército – também se beneficiaram grandemente dessa aproximação. 

Os Estados Unidos seguiram sendo o país sob cujas asas, durante toda a Guerra Fria, o Brasil se acomodou – até pelo menos o crepúsculo do seu regime militar, em 1985. Com o fim da bipolaridade EUA-URSS e a chegada do século 21, as coisas pareciam estar mudando de direção. Uma nova ordem de poder estava se configurando no horizonte. Um século depois de os EUA terem se tornado os maiores sócios comerciais do Brasil, a China lhes tomou o lugar. Pequim responde, hoje, por cerca de 35% das transações comerciais externas de nosso país, contra pálidos 15% de Washington.

A chegada de governos de esquerda ao Planalto, em 2003, em conjunção com fatores sistêmicos (11 de Setembro, ascensão de novos polos de governança internacional), pôs em marcha uma experiência inovadora de política externa brasileira. Um dos tokens desse momento é o BRICS, grupo de grandes países do Sul Global.

Discordar é normal

O mundo tem mais ou menos 200 unidades territoriais e soberanas. Cada uma delas exerce a prerrogativa de formular a norma de conduta nas relações exteriores. Como é razoável supor, a regra vale também para Brasil e EUA. E a verdade é que, mesmo em momentos de distanciamento entre os dois Estados do hemisfério, houve esforços para reconciliá-los. Governos moderadamente críticos a Washington, como os de Juscelino Kubitschek e Getulio Vargas, e abertamente desafiadores, como os de Jânio Quadros e João Goulart, ainda assim votavam com os EUA na ONU.

Não obstante, trata-se de países diferentes entre si – e me refiro a aspectos estruturais. Enquanto os EUA têm a 2ª maior economia do mundo (em paridade de poder de compra), o maior parque tecnocientífico e, de longe, a maior capacidade militar do planeta, o Brasil é potência média e economia emergente do Sul Global. É saudável, portanto, que os dois divirjam. Dadas as profundas e enormes dessemelhanças entre Brasil e EUA, é possível até afirmar que, se um está concordando muito com o outro, é um mau sinal. Sinal de que alguém na relação está “comprando” agenda que não é a sua.

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