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Existe lua de mel na política externa de Lula?

100 dias já se foram e a janela de oportunidades está se fechando. É fundamental aproveitar a lua de mel ao máximo

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#INTERNACIONAL 13 de abr. de 236 min de leitura
Acompanhado de uma comitiva, o presidente Lula é recepcionado no desembarque ao chegar na China. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação Presidência da República
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias13 de abr. de 236 min de leitura

Ao longo desta semana, praticamente todos os colunistas, em quase todos os veículos de imprensa brasileiros, dedicaram textos a um balanço tentativo dos primeiros 100 dias de governo Lula III. O marco cronológico, que remete à longa e momentosa passagem de Franklin Delano Roosevelt pela Casa Branca, não tem estatuto legal nem tampouco traz algum sentido intrínseco. É baliza artificial e arbitrária. Ainda assim, movimenta expectativas e motiva projeções de agora até o fim do mandato.

Os primeiros 100 dias correspondem, via de regra, àquele período em que o líder, fresco no cargo, não coleciona desgastes que seguramente virão com o tempo e, portanto, acumula capital político tal que lhe permite avançar com suas agendas – inclusive com as mais impopulares. Em referência ao fenômeno, politólogos costumam lançar mão da expressão “lua de mel”.

A lua de mel entre população e presidente pode durar mais do que uma centena de dias ou menos. Barack Obama ficou 2 anos sem que os seus índices de popularidade recuassem consistentemente. Já Donald Trump, quando empossado, em janeiro de 2017, era menos popular do que quando venceu as eleições, em novembro de 2016. Seja como for, a dúvida crucial é se, em temas de política exterior, marcados pela perspectiva de continuidade e relativa previsibilidade, faz sentido evocar o conceito.

100 dias não são 100 anos

Políticas externas de Estados territoriais e soberanos são forjadas ao longo dos anos – séculos – de existência das coletividades nacionais. No exemplo do Brasil, há uma cauda bicentenária para considerar. Não se deve, obviamente, desprezar o peso da inércia. O repertório existente de práticas, construído em concomitância com a própria identidade do país, condiciona e limita o tomador de decisão. Não se reinventa a roda diplomática de ciclo eleitoral em ciclo eleitoral.

Um caso prenhe de sentidos, para todo estudioso do tema, foi o recém-concluído mandato de Jair Bolsonaro. Tendo prometido atear fogo nas tradições e promover uma revolução durante o curso de sua campanha e nos primeiros dias de Palácio do Planalto, o ex-presidente foi gradualmente enquadrado pelas instituições da política exterior. Não que o processo tenha se desenrolado calma e pacificamente. Bolsonaro é um predador institucional. Sempre foi. Ocorre que, diante de sucessivos fracassos em dobrar a máquina, não lhe restou opção senão dissimular e curvar-se.

Bolsonaro abriu mão dos anéis – a demissão do seu primeiro chanceler, Ernesto Araújo, talvez tenha sido o auge da trajetória – e, ao cabo, o seu segundo ministro do exterior, Carlos França, já emulava os antes amaldiçoados “globalistas”. O plano elaborado para o governo Bolsonaro II, rejeitado na urna, valia-se de linguajar institucionalista e onusiano. A impressão, ao fim de quatro anos, é que o bolsonarismo diplomático foi intensamente superficial. Causou estragos, sim, mas não atingiu as fundações do edifício. O que permite, em curto espaço de tempo (100 dias?), retificar o curso de ação.

Cenários probabilísticos da política exterior

Consideremos, apenas para efeito didático, que a política externa seja produzida em dois estágios: no primeiro, que ocorre dentro do país, ela é formulada; no segundo, concretizado fora do país, ela é implementada.

Na sequência, imaginemos que um governo federal qualquer, no Brasil, tenha 50% de chance de convencer atores domésticos: Congresso, STF, unidades de federação, burocracias domésticas, sociedade civil. E, superada essa etapa, outros 50% de chance de êxito ao propor, junto a burocracias internacionais e demais Estados nacionais, um determinado conjunto de conteúdos programáticos. O governo genérico teria, portanto, algo como 25% (guarde esse número!) de probabilidade combinada de sucesso em imprimir à política externa brasileira uma condução autoral. Chamemos este primeiro cenário de típico. Ou, ainda melhor, de política externa produzida por um governo "normal". Dentro de tais circunstâncias, os primeiros 100 dias da gestão diferem pouco, quase nada, dos últimos 100 dias.

Agora, falemos de um caso atípico – o governo Bolsonaro. Ao romper com longevos equilíbrios e embaralhar as cartas da política externa, suas chances de vencer resistências domésticas eram menores do que o costumeiramente esperado. Atribuamos, arbitrariamente, uma taxa de probabilidade de sucesso a ele: 30%. Isso significa que as chances de insucesso seriam da ordem de 70%. O raciocínio pode ser replicado no nível dos atores externos: ao propor revolução, o máximo que Bolsonaro angariou para o Brasil foi rejeição de outros Estados e organizações internacionais. Um país de credenciais medianas, como o nosso, precisa pactuar. Se as chances de sucesso/insucesso no plano internacional também forem estimadas, respectivamente, em 30% e 70%, Bolsonaro, então, tinha – por hipótese – menos do que 10% de probabilidade combinada de executar a sua política externa revolucionária. De modo nada surpreendente, foi atropelado pela realidade.

Por oposição a Bolsonaro, o governo Lula é outro caso atípico. Ao prometer restaurar o Brasil histórico, respeitando dinâmicas consensuadas entre países, além de restituir papéis dos atores políticos internos e preservar a Constituição federal, o novo (velho) presidente da República conta com inusual boa vontade dos stakeholders da política externa, dentro e fora das fronteiras nacionais. Inverte a lógica que recaía sobre o seu antecessor: o compromisso com o status quo ante (isto é, anterior ao governo Bolsonaro) lhe confere segurança e gera potenciais recompensas. Por isso, diremos que Lula tem, vá lá, uns 70% de chance de avançar na política externa em cada um dos dois planos (o doméstico e o internacional), o que equivaleria a uma probabilidade combinada de aproximadamente 50% de sucesso. Em comparação com os cenários anteriores (governo "normal" e governo Bolsonaro), ele está com a faca e o queijo nas mãos.

Lula cumprimenta o Vice-Presidente Geraldo Alckmin, antes de embarcar à China, em 11 de abril. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação Presidência da República
Lula cumprimenta o Vice-Presidente Geraldo Alckmin, antes de embarcar à China, em 11 de abril. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação Presidência da República

Toda lua de mel chega ao fim

O problema de Lula é que, além de serem meras abstrações, os números acima são contingentes de um determinado estado de espírito. O cálculo aplica-se ao tempo presente, com suas prefigurações e seus condicionamentos. Nesse sentido, os 100 dias importam. E a janela de oportunidades está se fechando. Já começam a acontecer os previsíveis estranhamentos com Estados Unidos (navio iraniano, Ucrânia, China) e Europa (meio ambiente, Ucrânia, acordo com Mercosul). A recriação da Unasul acrescentará nova onda de queixas, também provindas do establishment político no país. Em suma, é fundamental aproveitar ao máximo a lua de mel na política externa – antes que ela chegue ao fim.

* Dawisson Belém Lopes é professor de política internacional a UFMG e pesquisador visitante do The Latin American Centre da Universidade de Oxford, no Reino Unido,

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