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Frente Ampla é quase amor

O desfazimento da Frente Ampla é destino inevitável. Vai faltar ministério, vai sobrar mágoa. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Que seja eterna enquanto dure

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#POLÍTICA23 de dez. de 225 min de leitura
Lula e Alckmin participam da sessão de encerramento do grupo temático do governo de transição em Brasília, em 13 de dezembro. Foto: Evaristo Sá/AFP
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias23 de dez. de 225 min de leitura

O frenteamplismo não chega a ser uma jabuticaba, como se sabe. Na história das comunidades políticas, vários são os exemplos de composições em que, de alguma maneira, indivíduos abriram mão de suas idiossincrasias e convicções programáticas em nome de um bem maior – ou contra um mal maior. Em regra, o movimento de concertação é precedido por grandes choques, desses capazes de colocar em risco as fundações em que se assentam as relações sociais e humanas. Não há Frente Ampla que se justifique publicamente sem a sombra do trauma iminente, sem o horror da destruição total.

A aliança entre Roosevelt, Churchill e Stálin, na Segunda Guerra Mundial, para contrapor-se à ameaça representada pelos fascismos, é um marco moderno dessa modalidade, no âmbito internacional. No plano doméstico, o incensado Pacto de Moncloa, referência de nove entre dez políticos latino-americanos, encarnou ideais do frenteamplismo, ao promover transição relativamente suave do franquismo para a vida democrática na Espanha. Nelson Mandela, após permanecer 27 anos encarcerado por motivação política, também praticou certo tipo de frenteamplismo, ao apaziguar ânimos e governar, ombro a ombro com seus opositores históricos, uma África do Sul à beira da convulsão social.

A bem da verdade, nem mesmo no Brasil uma coalizão dos heterogêneos significa algo efetivamente novo.

Velhos hábitos não morrem jamais

O Brasil havia passado por uma quebra democrática no ano de 1964, quando militares tomaram à força o poder. Como costuma ocorrer, o golpe teve entusiastas de primeira hora que, passado um período, se desiludiram com o novo regime e foram parar na trincheira da oposição. Carlos Lacerda é o caso mais notório. Depois de vocalizar na imprensa, por anos e anos, virulenta crítica a governantes democraticamente eleitos, o líder udenista foi favorável à deposição do presidente João Goulart por meios ilegítimos, saindo às ruas para celebrar a sua queda. Com o endurecimento dos militares, em 1966, o ex-governador da Guanabara fez uma pirueta e... uniu-se ao próprio Jango, e a outro desafeto, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, na chamada Frente Ampla. Tudo em nome da democracia, dizia-se.

Essa foi a senha para atiçar os militares, que só precisavam de um pretexto para abrir a caixa de ferramentas e colocar em prática o seu vasto repertório de truculência. Costa e Silva mandou proibir a Frente Ampla, em abril de 1968. Cumpre registrar que, entre 1967 e 68, foram decretados atos institucionais draconianos, em especial o de número 5, que consagrava, na prática, o regime de exceção. E havia um detalhe fundamental nessa história: enquanto Goulart seguiu no seu exílio, em Montevidéu, JK e Lacerda estiveram ao alcance dos militares. Acabaram presos pelo regime. Kubitschek, um dos mais populares líderes brasileiros da era republicana, foi alvo de acusações de corrupção passiva – uma delas, ironicamente, envolvendo um apartamento, no Rio de Janeiro, que lhe teria sido presenteado por empresário.

A História se repete como Frente Ampla

Alguém já disse que a História é uma senhora irônica. E o Brasil do século XXI ilustra ricamente a alegoria. Depois de sair da presidência com índices estelares de popularidade, Luiz Inácio Lula da Silva passou a enfrentar graves acusações na Justiça. Foi preso, em 2018, pela segunda vez em sua vida – os militares já haviam levado o ex-líder sindical para trás das grades, em 1980. Permaneceu numa cela em Curitiba, capital do Paraná, por 19 meses, saindo após polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal – que lhe devolveria, em abril de 2021, os direitos políticos, reabilitando quem era dado por acabado. O resto da história é conhecido: Lula concorreu à presidência do Brasil e, na mais disputada eleição da história da República, superou o atual incumbente, Jair Bolsonaro, em outubro de 2022, qualificando-se para um terceiro mandato, a partir de janeiro de 2023.

Apoiadores do então candidato pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, comemoram o resultado da eleição presidencial na praça da Cinelândia, no Rio de Janeiro, em 30 de outubro. Foto: Pablo Porciuncula/AFP
Partidários de Lula comemoram resultado da eleição na praça da Cinelândia, no Rio de Janeiro, em 30 de outubro. Foto: Pablo Porciuncula/AFP

A beleza do processo histórico está justamente na acomodação das forças que antecedeu a vitória nas urnas. Para tentar impedir a continuidade no poder do ultradireitista Bolsonaro, maior predador institucional de que já se teve notícia, uniram-se em torno de Lula variadas correntes do espectro político-partidário – da esquerda revolucionária de Léo Péricles à direita superliberal de João Amoêdo, passando por diferentes tons de centro. No fundo, era aliança contra a fascistização de um país. O risco de destruição da ordem democrática desde o seu interior, à moda de Orbán, Erdogan, Maduro ou Putin, era perspectiva bastante palpável. Logo, colaborações impensáveis desenharam-se no horizonte – como a que resultou da chapa estrelada por dois rivais históricos, Lula e Alckmin.

Porém, verdade seja dita, ninguém fez jura de amor eterno. Era só estratégia de sobrevivência, todos sabíamos. Superado o momento de máxima tensão, com a diplomação e o eventual empossamento dos novos ocupantes do Palácio do Planalto, a descompressão do quadro político nacional torna-se previsível – e até desejável. Com ela, virá um gradual afrouxamento de vínculos que se forjaram na penúria constitucional e no padecimento democrático. Vai faltar ministério na Esplanada, vai sobrar ressentimento em Brasília. Farinha pouca, meu pirão primeiro. O desfazimento da Frente Ampla é só questão de tempo. Portanto, que seja eterna enquanto dure. Até que uma próxima Frente Ampla se reúna novamente para livrar-nos do mal. Amém.

* Dawisson Belém Lopes é professor de Política Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e "academic visitor" (2022-2023) do The Latin American Centre da Universidade de Oxford, Reino Unido

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