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Há vida inteligente fora da anglofonia?

Mesmo que não sejamos quixotescos e decidamos nos integrar plenamente aos fluxos globais em língua inglesa, assimetrias estruturais não devem ser ignoradas ou minimizadas

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#EDUCAÇÃO18 de ago. de 234 min de leitura
Marcio Pochmann é anunciado na presidência do IBGE. Foto: Elza Fiuza/Arquivo Agência Brasil
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias18 de ago. de 234 min de leitura

As últimas semanas testemunharam curiosa polêmica que envolveu o novo presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), professor Marcio Pochmann. O fundamento da contestação geral à sua nomeação – feita pelo presidente da República do Brasil – é que Pochmann seria mais “político” do que “técnico”, não se adequando, portanto, à job description. Como desdobramento da tese, muitos alegaram que, embora prolífico e bastante referenciado na academia, o professor era falto de produção científica em língua inglesa. Seria esse, de fato, um indício de atecnia?

Não convém negar que, na média, escrever textos em inglês assegura mais impacto ao produto intelectual. Afinal, os Estados Unidos, país falante oficial do inglês, têm o maior parque acadêmico do mundo, sendo seguidos pelo Reino Unido, outro país falante oficial do inglês. Conforme dados recentes da Organização de Estados Ibero-Americanos (OEI), 95% dos artigos científicos indexados no mundo estão disponíveis na língua de Shakespeare, ao passo que apenas 1% está redigido nos idiomas de Cervantes e Camões.

O referido relatório da OEI vai além: revela que 84% dos pesquisadores ibero-americanos preferem disponibilizar a sua produção científica em inglês, e não em língua materna. Essa subordinação empírica aos padrões dos países do Norte Global não se dá, porém, sem grandes sacrifícios. Como apontado por outro estudo de corte acadêmico, feito com pesquisadores não falantes nativos do inglês, 94% dizem precisar de tempo extra para preparar trabalhos em inglês, ao passo que 50% preferem não fazer apresentações orais em congressos internacionais. No fim das contas, a proficiência em língua inglesa mostra-se barreira prática para a internacionalização do conhecimento.

De profecias autorrealizáveis

A ideia de que o inglês é “língua franca da ciência” precisa ser colocada em perspectiva. Não apenas pelas injustiças que vêm embutidas nas práticas acadêmicas correntes – com base no mesmo estudo veiculado pela revista PLOS Biology, manuscritos serão rejeitados por critérios linguísticos quase 3 vezes mais quando quem os submete não fala inglês como um nativo –, senão também pelo fato de se tratar de uma profecia autorrealizável.

Rankings internacionais, via de regra, premiam universidades do mundo anglo-saxão. Em alguns dos mais prestigiosos levantamentos, até a metade da pontuação de uma instituição virá do critério reputacional – que nada mais é do que uma pesquisa do tipo top of mind, dessas costumeiramente feitas com consumidores. Naturalmente, os nomes das universidades com que somos bombardeados pela vida inteira, em filmes hollywoodianos ou séries por streaming, lideram com ampla margem as classificações. Há uma potente máquina de construção de marcas, afinal, operando por décadas a fio, e atraindo cérebros e recursos. Dá resultado.

Outro fenômeno interessante é como classificações interuniversitárias internacionais usam repositórios de artigos cujos itens estão disponíveis em língua inglesa, majoritariamente. O filtro idiomático induz no pesquisador não falante nativo de inglês um comportamento adesista, uma vez que, no cálculo de sobrevivência, é preciso fazer o seu produto intelectual circular e ser citado. Se o trabalho não vier a integrar “prestigiosos” acervos da anglofonia, permanecerá invisível para a maior parte da comunidade científica global. As gigantes Elsevier (Scopus) e Clarivate (Web of Science), empresas que gerenciam grandes baús globais de ciência de ponta, são atores-chave para realizar a profecia.

Por fim, um aspecto decisivo para a profecia realizar-se é o pragmatismo de diversos países do Sul Global, que abraçaram o inglês como regra do jogo. Basta notar que o pioneiro “Academic Ranking of World Universities”, criado em 2003 pela universidade chinesa Jiao Tong, de Xangai, está todo baseado em revistas, repositórios e prêmios científicos do mundo anglófono. Para não mencionar a maciça adesão de países emergentes não anglófonos – Arábia Saudita, Brasil, China, Emirados Árabes, Malásia, México, Turquia – às classificações feitas por agências britânicas como a Times Higher Education e a Quacquarelli Symonds.

Soberania cognitiva

A produção acadêmica em língua pátria ainda se justificará por uma série de motivos – que vão da disponibilidade das fontes primárias às comunidades que serão impactadas pelo estudo, passando pela própria geopolítica do conhecimento e a percepção de que existe um forte elemento de soberania nacional presente nas dinâmicas cognitivas globais. O importante é não naturalizar processos que nada têm de naturais. As práticas acadêmicas são construções políticas, aderentes a determinadas visões sobre o mundo e as relações humanas. Mesmo que não sejamos quixotescos e decidamos, ao cabo, nos integrar plenamente aos fluxos globais (em língua inglesa), as assimetrias estruturais não devem ser ignoradas ou minimizadas.

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