#INTERNACIONAL
Não existe ascensão silenciosa de um país
A maior transformação de Lula 3 ocorreu na calibragem das pretensões da política externa. Se já se falava em diplomacia “ativa e altiva” há 20 anos, hoje a prática é mais audaciosa
Dawisson Belém Lopes, para Headline IdeiasEm seu terceiro mandato presidencial, Lula não repete a política externa posta em prática no início do século 21. Evidentemente, há continuidades – e não são poucas. Mas as diferenças também parecem, a esta altura, bastante pronunciadas.
Há 15 anos, o discurso soberanista brasileiro alimentava-se da expectativa – gerada pela descoberta de reservas de petróleo na camada pré-sal – de que o desenvolvimento baseado em extrativismo mineral seria nosso caminho. A ênfase em economia verde e nos padrões da governança ambiental, hoje, contrasta fortemente com aquela visão de mundo e faz-se mote da atuação internacional do novo governo.
O regionalismo também voltou, mas está remoçado. Em 2023, há mais cautela na aproximação com ditaduras de esquerda da América Latina. Há menos entusiasmo, por certo, com a dita “onda rosa”. Embora siga como evangelista da integração sul-americana, Lula está disposto a aproximar-se de México, América Central e Caribe. E, por entender os desafios que se põem no horizonte, antagonizará menos com os Estados Unidos no hemisfério.
A maior transformação, contudo, ocorreu na calibragem das pretensões de nossa política externa. Se já se falava em diplomacia “altiva” há 20 anos, hoje a prática é mais audaciosa. A tentativa de mediar um conflito de primeira grandeza, no plano internacional, não chega a ser totalmente inédita (vide o Acordo de Teerã), mas é precoce. A autoconfiança de Lula e equipe discrepa da postura precavida e reativa dos idos de 2004, quando o país foi convidado a liderar a missão para estabilização do Haiti (Minustah).
"Façam como a Índia"
Entre os que advogam por uma postura menos protagônica do Brasil nas relações exteriores, repete-se o argumento de que nos faltam, por exemplo, os atributos geopolíticos da Índia. Não é de hoje que vimos defendendo um olhar atento para Nova Délhi. Contudo, a emergência indiana não aconteceu “ao natural”. Foi um processo duríssimo, não infenso à contestação pelas grandes potências.
Mesmo que desconsiderássemos, apenas por um instante, que o país de Gandhi e Nehru, diferentemente do jovem Brasil, é uma civilização de 5 mil anos, com mais de 1 bilhão de cidadãos nacionais, não poderíamos deixar de notar, no curso do século XX, as disputas que marcaram a sua trajetória moderna – de colônia britânica a Estado independente, em 1947. A soberania foi conquistada com lutas sangrentas, não como dádiva.
Tampouco foi simples, para a Índia, adquirir o status de potência nuclear. O país nadou contra a maré das relações internacionais ao não assinar o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) – instrumento de direito internacional que assegurava apenas aos vencedores da Segunda Guerra a capacidade legal de deter arsenais nucleares. Ao desenvolver tecnologia autóctone passível de uso dual (civil e militar), a Índia, por óbvio, quebrou regras e desrespeitou convenções.
Ao longo desse caminho de afirmação global, Nova Délhi teve de suportar castigos e estigmas. Não se curvou às pressões. Depois de algumas décadas, creio tenha conseguido “negociar” a sua entrada no clube das grandes potências. Já é a terceira economia do mundo em paridade de poder de compra e, recentemente, tornou-se a maior população do planeta. Mas não nos enganemos: pagou um preço alto.
O mito da ascensão "harmoniosa" da China
De igual maneira, não há nada mais equivocado, diante do acumulado de evidências, do que a crença na emergência “pacífica” da China no decorrer do último século. Regional e globalmente, a República Popular enfrentou resistências. Da humilhante ocupação, pelo Japão, ao não reconhecimento internacional do governo de Pequim – entre 1949 e 1971. Da condenação, em uníssono, do massacre da Praça da Paz Celestial, às atuais denúncias de abusos em matérias de direitos humanos, e campanhas de descrédito do Partido Comunista Chinês. Nunca houve, de fato, uma trégua.
Chama muito a atenção, para os propósitos da análise, a mudança da opinião pública estadunidense sobre a China. Segundo levantamento do Pew Research Center, até o recente ano de 2011, 51% dos americanos tinham visões positivas sobre o país asiático, contra 36% de visões negativas. Hoje, mais de 80% dos estadunidenses enxergam desfavoravelmente a China. A guinada passou pelas manobras discursivas de Trump, mas tem raízes muito mais profundas do que isso.
Notem que, aqui, não se discute o mérito ou o demérito das ações chinesas no plano doméstico ou exterior. Contesta-se, isto sim, a ideia de que é possível subir a escadaria das relações internacionais sem perturbar os seus guardiões. Eis uma grande bobagem. Há potências médias conformadas à ordem – como Canadá, Austrália, Suécia, Holanda – e outras que, por nutrirem ambições maiores, engajam-se em revisionismo. À segunda classe de atores, chamaremos de “potências emergentes”.
Brasil, emergência e "revisionismo suave"
Este Brasil que emerge diante dos nossos olhos é revisionista, sim, mas de um tipo suave. O Brasil de Lula não nutre a pretensão de desenvolver ogivas nucleares para fins bélicos, tampouco inspira temores de praticar subimperialismo na sua própria região.
O "gigante gentil" reclama um assento à mesa alta e, para tanto, promete cumprir os protocolos. Se será bem-sucedido no empreendimento, o tempo dirá. Uma certeza, porém, já se pode ter: haverá gritaria. Dentro e fora das nossas fronteiras.
* Dawisson Belém Lopes é professor de política internacional a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)