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O agro é tudo, menos amador

O agro cresceu com Lula, amoldou-se a Bolsonaro e, a partir de 2023, voltará a tratar com os “companheiros” sem fazer cerimônia. Tudo como dantes no quartel de Abrantes

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#AGRONEGÓCIO25 de nov. de 225 min de leitura
Os primeiros anos de um país sul-americano, situado na periferia do capitalismo global, nunca são fáceis. O bilhete de entrada no clube das nações foi comprado com muita exportação de gêneros agropastoris. Foto: Daniel Marenco/HDLN
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias25 de nov. de 225 min de leitura

Comemoravam-se duzentos anos de Brasil independente. A festa, que já não era exatamente um primor de bom gosto, alcançaria o seu auge com a entrada sincronizada em cena de vinte e sete tratores, pintados de azul, verde e amarelo, ao que a turba bolsonarista reagia, absolutamente ensandecida, aos gritos de “agro, agro, agro”. Um clássico instantâneo do gênero kitsch. Naquele país que se instituiu às margens do Ipiranga, restava claro até para um observador alienígena que o agro era mais do que um simples negócio.

Os primeiros anos de um país sul-americano, situado na periferia do capitalismo global, nunca são fáceis. Barganhas tornam-se necessárias para que a entidade recém-nascida possa sentar-se à mesa com as colegas mais velhas e já enturmadas. Nosso bilhete de entrada no clube das nações foi comprado com muita exportação de gêneros agropastoris. Era, em larga medida, o que tínhamos a oferecer ao mundo: cana-de-açúcar, café, charque, drogas do sertão... Aliás, já era assim antes mesmo de o Brasil ser, oficialmente, um Império.

O século XIX ajuda a entender parte do que, ainda hoje, vivemos como realidade cotidiana. O assenhoreamento do poder pelos oligarcas, donos de latifúndios e escravizadores de pessoas, trouxe marcas fundas no caráter nacional. Após a chegada ao poder de Pedro II, em 1840, conservadores jamais deixariam de controlar fontes de riqueza no território e, com isso, projetar o seu peso sobre os aparatos do Estado. A política, por estas bandas, nunca foi apenas vocação de aristocrata; era e é canal oficial para a dominação econômica.

Dilema de Lampedusa  

O advento da República não implicou câmbio estrutural. O capital até trocou de mãos ao longo do tempo - e, naturalmente, de forma. O setor primário da economia é, hoje em dia, mais intensivo em tecnologia do que a maior parte das indústrias nacionais. E a mecanização, que traz eficiência produtiva como cartão de visita, também tem a sua face feia: reduz o número de postos de trabalho, aprofunda a desigualdade, destrói o meio ambiente, acomoda práticas laborais análogas às da escravidão. Vive-se, de maneira inequívoca, o dilema de Lampedusa: o agro precisa mudar continuamente para permanecer central.

Não surpreende que o agro tenha encontrado um modus vivendi sob Bolsonaro. Houve estranhamento, especialmente quando o capitão reformado teimou em acossar os chineses. Ernesto Araújo, que virou pedra no sapato de ruralistas, teve a cabeça posta a prêmio. Foto: Daniel Marenco/HDLN

O fenômeno extrapola as finanças. Há, em 2022, uma pujante máquina cultural do agro, com penetração em variadas geografias, que se casa bem com a febre conservadora que acometeu o Brasil. O “sertanejo universitário”, franquia bem-sucedida da música popular, é um crossover perfeito. A tentativa de “exportar” para as classes médias citadinas o que o campo produz nas artes. Com a providencial ressalva de que, como costuma acontecer com as tradições, essa é uma criança gerada em laboratório. Mas, afinal, quem se importa? Nem toda commodity vem da terra, ora.

A bolsonarização do agro

Não surpreende, portanto, que o agro tenha encontrado um modus vivendi sob Jair Bolsonaro. Houve estranhamento aqui e acolá, especialmente quando o capitão reformado, ou alguém do seu entorno, teimou em acossar os chineses. Ernesto Araújo, que virou pedra no sapato de ruralistas, teve a cabeça posta a prêmio. Verdade seja dita: não há fechamento de contas nacionais que possa prescindir das vendas para o populoso e endinheirado país asiático. No momento em que a República Popular faz sua transição para uma sociedade de renda média, segurança nutricional torna-se uma grande questão estratégica. Sorte de quem pode oferecer, em larguíssima escala e a preços competitivos, soja e carne - além de minério. 

Nos dias que correm, testemunhamos a produção de um documentário sobre o Brasil. Atestam-se, outra vez mais, a resiliência e a potência dos oligarcas bicentenários. Três semanas após concluídas as eleições gerais, ainda há convulsões milimetricamente planejadas – e atos terroristas em execução. Aliados do candidato presidencial derrotado na urna balançam o barco para não entregar o poder. Não por acaso, tais manifestações, de natureza francamente antidemocrática, são endêmicas nos estados da federação com hegemonia do agro. Já não resta dúvida de que vários barões do agronegócio estão envolvidos até o pescoço com o financiamento dos protestos. 

Nada obstante, eu apostaria o meu valioso porquinho de barro que, empossado o novo chefe do Executivo federal, tudo voltará a ser como dantes no quartel de Abrantes - e nos demais quartéis desta nação. O agro, que se mantém relevante desde sempre, dançará conforme a música. Se há governo, estará a favor. Cresceu com Lula no início do século, amoldou-se a Bolsonaro no atual quadriênio e, a partir de 2023, voltará a tratar com os “companheiros” sem fazer cerimônia. O jogo de pôquer é para profissionais. E, como dizem por aí, o agro é tudo – tudo menos amador.

* Dawisson Belém Lopes é professor de Política Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e "academic visitor" (2022-2023) do The Latin American Centre da Universidade de Oxford, Reino Unido

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