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O diabo veste Nike

A Copa é a passarela por onde desfilam, a cada quatro anos, os melhores praticantes do esporte mais popular do planeta. Chegou a hora de acompanhar suas últimas tendências

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#ESPORTE9 de dez. de 226 min de leitura
Marquinhos lamenta o pênalti perdido durante a partida das quartas-de-final da Copa do Mundo contra a Croácia, no Education City Stadium, em Al-Rayyan, a oeste de Doha. Foto: Anne-Christine Poujoulat/AFP
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias9 de dez. de 226 min de leitura

Naquela que é a melhor cena do enlatado americano, Miranda Priestly, personagem que inspira a trama, explica a uma de suas assistentes, com inexcedível arrogância, a origem da vestimenta:

"Você vai até o seu armário e escolhe esse suéter horroroso, porque está tentando dizer ao mundo que se leva muito a sério para se importar com o que vai vestir; mas o que você não sabe é que a cor desse suéter não é um simples azul; é azul-celeste. E você ignora o fato de que, em 2002, Oscar de La Renta fez uma coleção de vestidos na cor azul-celeste. Acho que foi Yves Saint-Laurent quem produziu jaquetas militares em azul-celeste, na sequência. E então o celeste apareceu em coleções de outros oitenta estilistas. Passou para as lojas de departamento e foi parar nas lojas populares – onde você, sem dúvida, comprou esse suéter numa liquidação. No entanto, esse azul representa milhões de dólares e um gigantesco trabalho. O mais cômico é que você pensa que fez uma escolha que a exime da indústria da moda quando, na verdade, está usando um suéter escolhido para você pelas pessoas que estão nesta sala."

Ouro puro. Sociologia da moda para iniciantes, sob a forma de entretenimento de massas. E, por falar em massas, já imaginou como seria fazer o exercício de Miranda Priestly, só que tendo por referência o futebol internacional? Afinal, Copa do Mundo, evento que acontece ao longo deste mês, é – por que não dizer? – a passarela por onde desfilam, de quatro em quatro anos, os melhores praticantes do esporte mais popular do planeta. Ainda que as grandes ligas europeias – em especial, a britânica – representem a vanguarda da modalidade, é numa copa que as tendências se tornam visíveis e consolidadas. É chegado o momento, pois, de acompanhar as últimas modas no Qatar.

Do atacante que defende ao defensor que ataca

O futebol tal como ele se apresenta nos gramados do Oriente Médio, hoje, é representativo de um longo processo evolutivo. Para emular a crítica de moda interpretada por Meryl Streep, o campeoníssimo Brasil de 1958 e 1962, com Pelé, Garrincha e Zagallo, já trazia em sua disposição tática o embrião do “ponta que recompõe”, indo e voltando. O esquadrão que encantou o mundo e eternizou o estilo brasileiro do “jogo bonito”, em 1970, era precursor da noção de rotatividade, com ocupação de espaços em todo o campo, que foi levada às últimas consequências, nas duas Copas seguintes, pelo memorável “carrossel” holandês de Rinus Michels e Johann Cruijff.

Defesas ultracompactas, com duas linhas bem postadas, nasceram provavelmente em algum momento dos anos 1990 – como uma espécie de “lição às avessas” deixada pelo fracasso dos times brasileiros de Telê Santana, em 1982 e 1986. As vitórias dos professores Beckenbauer, em 1990, e Parreira, em 1994, embalaram um ciclo de receitas defensivas, que encontraria o seu auge – e momento de exaustão – em 2006, com a Itália de Buffon, Cannavaro e Materazzi. Até dá para colocar 1998 e 2002 entre parênteses, ma non troppo: as linhas que traziam atacantes fora-de-série, como Zidane, Ronaldo e Rivaldo, também contavam com Thuram e Roberto Carlos – defensores que revolucionaram as suas respectivas posições.

E goleiro lá precisa saber jogar com os pés?

Se não chegou a ser uma revolução copernicana, a imposição do estilo tiki-taka espanhol, em 2010, com posse de bola excessiva e “jogo sustentado” (isto é: o jogador com a bola deveria sempre encontrar duas opções de jogada, forçando o contínuo deslocamento dos colegas de equipe, e gerando dúvida no time oponente), mudou fortemente os rumos do esporte inventado na Grã-Bretanha e ressignificado no Brasil. O controle do passe, mais do que a eficiência do arremate final ou a impenetrabilidade da defesa, tornou-se a chave para a vitória – como Xavi e Iniesta, os meias do Barcelona, ensinavam em aulas magnas.

Em 2014, na segunda Copa do Mundo sediada no Brasil, descobrimos como um goleiro habilidoso com os pés – Manuel Neuer, maior craque da competição, a despeito de a FIFA não lhe ter concedido a honraria – pode fazer toda a diferença. Dir-se-á que, já na Copa da Itália, em 1990, o colombiano René Higuita encarnava o líbero do time, tabelando com seus defensores. Ok, é verdade, podemos conceder o ponto. De todo modo, nada que se comparasse à forma sistemática e germanicamente precisa como Neuer contribuía com a saída de bola dos campeões. Para não mencionar, no capítulo das criações que ditaram moda, o então novidadeiro "lateral de pé invertido", eternizado por Philipp Lahm, capitão da conquista teutônica.

Na escalada de transformações do ludopédio, atribuiria ao desfile de 2018, ocorrido na Rússia, a tendência às “marcações altas”, com tentativas repetidas, ao longo da partida, de “roubar” a bola mais proximamente ao gol adversário, mantendo os defensores oponentes sob contínua pressão. Outra novidade, essa de caráter institucional, mas com óbvias repercussões sobre o jogo jogado, foi a introdução do árbitro assistente de vídeo – o proverbial VAR. Não fosse a incorporação tecnológica profundamente disruptiva, e jamais teria sido marcada por Néstor Pitana a penalidade máxima que recolocou a França à frente da Croácia, na finalíssima de Moscou. O resto é história.

Jogadores do Marrocos se curvam enquanto comemoram após vencer a partida de futebol das oitavas de final da Copa do Mundo do Catar 2022, contra a Espanha, no Estádio Education City em Al-Rayyan, a oeste de Doha, em 6 de dezembro de 2022. Foto: Javier Soriano/AFP
Jogadores do Marrocos se curvam enquanto comemoram a vitória contra a Espanha nas oitavas, no Estádio Education City em Al-Rayyan, a oeste de Doha, em 6 de dezembro de 2022. Foto: Javier Soriano/AFP

E qual é a última moda no Qatar?

Bem difícil dizê-lo no momento em que a competição ainda se desenrola. Até as oitavas-de-final, os jogos da Copa de 2022 pareceram discrepar muito em seus roteiros. Confrontos truncados e de pouquíssimas possibilidades alternaram-se com disputas francas e cheias de gols. Seleções de África e Ásia ganharam mais jogos do que costumavam fazer – e isso embaralhou momentaneamente as cartas. Enquanto tradicionais equipes europeias e sul-americanas foram à lona, outras seguem vivas.

No que respeita à forma de jogar futebol, talvez haja – dizem os números – maior aproximação do gol e, com isso, muitos chutes de dentro da área. Outra mudança crucial, que vai a reboque da nova regra das cinco substituições (legado da pandemia de covid), é a incrível intensidade da performance e o incremento da variância tática durante a peleja esportiva. O Brasil, com seu time repleto de jovens expatriados, puxa a fila e avassala com volume de jogo, por vezes, irresistível. Mais até do que vencer o torneio, o grande desafio é deixar uma marca. Tal como a indumentária azul-celeste.

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