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O preto, o branco e o cinza

O câmbio profundo no mundo turva as vistas dos tomadores de decisão. O que não ocorre há muitos é que o trinarismo abriu caminho para comportamentos não alinhados às superpotências

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#INTERNACIONAL26 de mai. de 235 min de leitura
O conselheiro especial do presidente Nixon dos Estados Unidos, Henry Kissinger (E), aperta a mão do primeiro-ministro chinês Zhou Enlai (D), durante sua reunião secreta, em 9 de julho de 1971 em Pequim. Henry Kissinger, participou desde a abertura da porta para a China comunista até planejar um fim de jogo para a Guerra do Vietnã. Foto: AFP
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias26 de mai. de 235 min de leitura

Carl Schmitt – o jurista alemão e grande ideólogo político do nazismo – entrou fundo no que, em seu modelo explicativo sobre o mundo, determinava as relações humanas: a amizade. Não, não se tratava de visão idílica sobre a importância de ter amigos. Era bem outra coisa.

Para Schmitt, era como se, no frigir dos ovos, todas as pessoas se guiassem por uma bússola de amizade-inimizade, pelo que se aproximariam de uns ao passo que se distanciariam de outros. Não há, na lógica schmittiana, o meio-termo: ou é amigo, ou é inimigo. No esquema binário, o inimigo do meu inimigo é, por essa razão, meu amigo; já o amigo do meu inimigo é, pela mesmíssima lógica, meu inimigo. Aula de aritmética básica.

Se coube ao pensador o mérito de simplificar a tarefa de explicar as interações em sociedade, também se pode alegar – a contrario sensu – que Schmitt foi um facilitador do totalitarismo de Hitler, na exata medida em que, não deixando margem para quem não se encaixasse no binarismo essencialista, justificava o enquadramento – e, no limite, a “correição” – dos cidadãos. O horror era o limite.

O furo na armadura schmittiana

A Guerra Fria trouxe consigo, em escala planetária, a lógica schmittiana. O enfrentamento de dois projetos de mundo – o americano e o soviético – chegou, literalmente, a todos os cantos do planeta. Extrapolou, inclusive, os limites da atmosfera terrestre, com corrida à Lua e tentativas, momentaneamente contidas, de colonização do espaço sideral. Valia tudo para fazer avançar os interesses de um competidor, X, em prejuízo do rival, Y. Era a chamada “lógica da soma zero”, da qual nada, rigorosamente nada, escapava.

O sistema assimetricamente bipolar de Estados nacionais, constituído no decorrer da segunda metade do século XX, acomodou uma coleção de conflitos por procuração – Coreia (1950), Vietnam (1955), Cuba (1962), Angola (1974), Afeganistão (1979). União Soviética e Estados Unidos jogavam xadrez com suas peças, comodamente postadas em tabuleiros bem longe dos seus territórios. Enquanto os ganhos eventuais eram difusos e de difícil aferição, os prejuízos eram palpáveis e estavam bem concentrados nas populações beligerantes locais.

No afã de escapar da armadura lógica schmittiana, países do bloco do Terceiro Mundo, ancestral do que hoje se convencionou chamar de Sul Global, ousaram lançar as bases de um movimento cuja premissa fundamental era, com boas razões, o “direito de não se alinhar”. No bojo do processo descolonizador de África e Ásia, nações como Gana, Egito, Indonésia, Índia e Iugoslávia assumiram protagonismo. A partir desse esforço existencial, instanciado em fóruns como o Movimento dos Não Alinhados e o Grupo dos 77, o trinarismo dos desalinhados, antes uma quimera, passou a substituir, em determinados temas e lugares, o binarismo asfixiante das superpotências.

Corte para 2023

Assistimos ao recrudescimento da bipolaridade assimétrica. O sistema internacional liberal, baseado em regras, torna-se mais e mais pressuroso. Reeditando o filme de décadas atrás, quando líderes do “Mundo Livre S/A” e da “Cortina de Ferro” lutavam por lealdades, hoje a questão mobilizadora é a ascensão da China – e as incertezas a ela associadas. O índice de toda efervescência geopolítica, por sua vez, é a guerra na Ucrânia – invadida por sua vizinha Rússia, em ruptura drástica da normatividade jurídica vigente. A ordem global, senhoras e senhores, encontra-se ameaçada.

Esta fotografia divulgada pelo serviço de imprensa presidencial ucraniano em 23 de maio de 2023 mostra o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky conversando com oficiais durante sua visita às posições avançadas das Forças Armadas da Ucrânia na zona de defesa de Vugledar-Maryinka, Região de Donetsk, por ocasião do Dia da Marinha. Foto: Divulgação Presidência Ucraniana/AFP
Esta fotografia divulgada pelo serviço de imprensa presidencial ucraniano em 23 de maio de 2023 mostra o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky conversando com oficiais durante sua visita às posições avançadas das Forças Armadas da Ucrânia na zona de defesa de Vugledar-Maryinka, Região de Donetsk, por ocasião do Dia da Marinha. Foto: Divulgação Presidência Ucraniana/AFP

O câmbio profundo turva as vistas e atiça as emoções dos tomadores de decisão. Faz-se notar, por exemplo, na agressividade da campanha por corações e mentes. O que não ocorre a muitos, ainda assim, é que o trinarismo, aquela conquista da geração de Bandung, abriu caminho para comportamentos não alinhados. A neutralidade, instituto do direito internacional, é possibilidade legal à mão de Estados que não pretendam ser tragados pela máquina da guerra. Há, em suma, vários tons de cinza entre o branco e o preto.

De todo modo, lições vão se acumulando. Quando se trata de graus de liberdade na política internacional, é preciso lutar por cada palmo de chão. Autonomia em política externa não vem como dádiva. Capacidade de gerar a própria norma de conduta, num ambiente altamente polarizado e conflituoso, depende de determinação e senso de propósito. A harmonia entre os povos, que ora parece tão distante, tem de ser construída. A missão é árdua e custosa. Nem todos remarão na mesma direção. Grandes estadistas, artigos em escassez no mundo contemporâneo, devem dignar-se a dar à paz uma chance.

* Dawisson Belém Lopes é professor de política internacional da UFMG.

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