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O que está por trás do flerte de Lula com Maduro

O grande desafio para o líder brasileiro, neste momento, é produzir um remédio que, sob a promessa de cura, não termine por lhe envenenar

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#INTERNACIONAL6 de jul. de 236 min de leitura
Lula cumprimenta o presidente da República Bolivariana da Venezuela, Nicolás Maduro, em encontro no Palácio do Planalto, em Brasília, em 29 de maio. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação Presidência da República
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias6 de jul. de 236 min de leitura

A cena é bem conhecida: Nicolás Maduro cruza com Emmanuel Macron nos corredores da COP27, em Sharm El Sheikh, Egito, no fim de 2022. Em clima cordial, o presidente venezuelano dispara: “E quando nos visita?”, ao que o mandatário francês, um tanto escorregadio, diz que tem interesse em começar um trabalho bilateral. Menciona que alguém havia falado bem do interlocutor sul-americano. Maduro, então, retorque: “Sim, temos bons amigos em comum”. Os dois despedem-se com a promessa de que Paris faria convite a Caracas para novas conversas.

Em janeiro de 2023, outro movimento importante deu-se no hemisfério. Por força da necessidade energética, Estados Unidos e Venezuela retomaram diálogo há muito congelado, criando esperanças de que Washington pudesse, eventualmente, suspender as sanções econômicas que impõe a Caracas. O histórico de deterioração do relacionamento bilateral teve seu auge com Trump e o exótico reconhecimento do governo de Juan Guaidó, presidente deposto da Assembleia Nacional venezuelana, como legítimo líder do país. Desde a chegada de Biden à Casa Branca, contudo, o pragmatismo cauteloso prevalece – e, aparentemente, Maduro voltou a ser um interlocutor autorizado.

O terceiro ato da reabilitação internacional de Nicolás Maduro ocorreu em Brasília, em maio do corrente, na reunião de cúpula dos chefes de Estado sul-americanos, convocada pelo Brasil, para retomada do projeto de integração regional. Lula, na ocasião, disse alto e bom som que, com base no que havia escutado do “companheiro” Maduro, era momento de reverter a narrativa de que a Venezuela não seria um país democrático. O que alguns viram como uma cobrança leve e envergonhada, a maioria – aí incluídos os chefes de Estado chileno e uruguaio – interpretou como atitude condescendente e inaceitável do presidente brasileiro.

Razões da reabilitação

Na formulação estratégica dos tomadores de decisão do governo brasileiro, o encaminhamento justifica-se por alguns motivos.

Em primeiro lugar, cabe reconhecer que uma Venezuela isolada e instável é fonte de múltiplos problemas para a América do Sul. Da não confiabilidade do suprimento energético ao fluxo descontrolado de migrantes, passando pela internalização de disputas entre potências extrarregionais, a débâcle de Caracas é o fracasso de todos nós ao seu redor.

Um país como a Colômbia, em processo sustentado de crescimento econômico, tem sido sobrecarregado pela entrada no território de mais de 1 milhão de refugiados venezuelanos nos últimos anos. Não por acaso, Gustavo Petro, presidente daquela República, é dos maiores entusiastas da ideia de recuperar a Venezuela. Guiado, antes de tudo, por pragmatismo.

Também há, por outro lado, oportunidades a explorar. A cooperação em áreas como defesa, meio ambiente, saúde pública e tecnologia do petróleo interessa enormemente. Os fluxos comerciais e de investimentos, numa Venezuela redemocratizada e reintegrada aos circuitos diplomáticos, irrigarão os Andes, a Amazônia e o Mar do Caribe, destravando potenciais econômicos em vários setores. 

De mais a mais, se se almeja a integração regional, é preciso costurar a volta de Caracas. Enquanto, na primeira década do século 21, em tempos de "Onda Rosa", o obstáculo para a unidade sul-americana parecia residir na Colômbia do direitista Álvaro Uribe, hoje a gestão Maduro é questão divisiva. Se Brasil e aliados foram capazes de trazer a Venezuela novamente ao sistema, a porta escancara-se para, no limite, a retomada de uma instituição nos moldes da Unasul.

E o Lula? E o PT?

Os dias se passaram e Lula não recuou da posição pró-Maduro. Pelo contrário: voltou a dizer, em rede de rádio, que a Venezuela conduzia mais eleições do que o Brasil, sinal de que a democracia seria, no frigir dos ovos, um “conceito relativo”. Os comentários despertaram a ira dos comentaristas políticos, encontrando algum eco no eleitorado nacional – que, conforme pesquisa Quaest de junho de 2023, considerou o afago ao líder venezuelano como o pior momento da atual gestão presidencial.

A insistência do chefe de Estado do Brasil em chamar para si a responsabilidade política da ação, servindo de escudo para Nicolás Maduro, é corolário de uma aposta em política externa. Lula crê possível a normalização da democracia venezuelana, oferecendo-se como facilitador do processo. Para tanto, precisa arrancar concessões de Maduro – ainda que num plano mais simbólico do que prático.

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e o presidente da Bolívia, Luís Arce, durante reunião com presidentes de países da América do Sul, no Palácio do Itamaraty, em Brasília, em 30 de maio de 2023. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e o presidente da Bolívia, Luís Arce, durante reunião com presidentes de países da América do Sul, no Palácio do Itamaraty, em Brasília, em 30 de maio de 2023. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

No cálculo do velho negociador petista, a oposição política venezuelana, ora prostrada, e os líderes ocidentais (vide Biden, Macron etc.) não se oporão ao movimento brasileiro. A realização de eleições limpas na Venezuela seria um primeiro passo – e um passo decisivo – para o início da reconstrução do país amazônico-andino-caribenho. 2024 vem aí.

A operação de “construção de confiança” entre atores políticos também traz componente partidário. Não é segredo que o Partido dos Trabalhadores, ao qual pertence o presidente do Brasil, manteve relações intensas com os governos socialistas de Chávez e Maduro, durante as mais de duas décadas em que MVR e PSUV ocupa(ra)m o Palácio de Miraflores.

A solidariedade à esquerda articula-se regionalmente por meio de instâncias como o Foro de São Paulo, mas também envolve relações interpessoais de longa data. Nos momentos de baixa, PT e Lula encontraram apoio em seus pares – e essa memória, certamente, ainda está viva.

Veneno-remédio

Na substância, a atitude do presidente do Brasil nem surpreende tanto. Bastaria ter lido o plano de governo de Lula, entregue ao TSE em 2022, e o intérprete mais treinado nas artes da política exterior reconheceria esse ânimo em formulações diplomáticas como a seguinte:

“Defender a nossa soberania é defender a integração da América do Sul, da América Latina e do Caribe, com vistas a manter a segurança regional e a promoção de um desenvolvimento integrado de nossa região, com base em complementaridades produtivas potenciais entre nossos países. É fortalecer novamente o Mercosul, a Unasul, a Celac e os Brics. É estabelecer livremente as parcerias que forem as melhores para o país, sem submissão a quem quer que seja. É trabalhar pela construção de uma nova ordem global comprometida com o multilateralismo, o respeito à soberania das nações, a paz, a inclusão social e a sustentabilidade ambiental, que contemple as necessidades e os interesses dos países em desenvolvimento, com novas diretrizes para o comércio exterior, a integração comercial e as parcerias internacionais.”

A surpresa – e o escândalo suscitado – está mais na forma, por demais frontal e sem nuança, como Lula abraçou publicamente o homólogo venezuelano. Há riscos, não resta dúvida, na manobra diplomática. Riscos que ele, todavia, quer encarar. O grande desafio para o líder brasileiro, neste momento, é produzir um remédio que, sob a promessa de cura, não termine por lhe envenenar.

* Dawisson Belém Lopes é professor de política internacional a UFMG e pesquisador visitante do The Latin American Centre da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

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