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O tripé macrodiplomático de Lula

O Brasil é país que, durante a última década, navegou sem rumo pelo mar revolto das relações internacionais. Chegou o momento de amarrar as pontas da política exterior e dar sentido lógico às ações estratégicas e táticas

Dawisson Belém Lopes , para o Headline Ideias
#INTERNACIONAL11 de set. de 236 min de leitura
O presidente Lula se reúne com o Príncipe da Arábia Saudita, Mohammad bin Salman, em Nova Delhi , Índia, em 10 de setembro. Fotos: Ricardo Stuckert/Divulgação Presidência da República
Dawisson Belém Lopes , para o Headline Ideias11 de set. de 236 min de leitura

O mundo tem testemunhado, nos últimos meses, o que poderia ser descrito como um brusco movimento de placas tectônicas: os aliados do Atlântico Norte, de um lado, reivindicando atenção e recursos para reverter a agressão cometida pela Rússia à soberania ucraniana; os países do Sul Global, de outro, um tanto alheios aos apelos, reclamando abordagem menos ocidentalista para temas internacionais. Do entrechoque de visões quase polares, nascem inovadoras configurações institucionais. E o Brasil, ciente das suas credenciais e do histórico diplomático, busca estabelecer-se por meio de difícil equilibrismo.

Há, digamos assim, três grandes dimensões a levar em conta nos cálculos de política exterior na atualidade – a geopolítica, a geoeconômica e a ambiental. O que se passa numa delas acaba, invariavelmente, por afetar as outras duas. Esse efeito transbordante tem sido percebido com clareza na estratégia brasileira para mover-se na arena internacional. Por conta disso, três espaços diplomáticos vêm sendo privilegiados por Lula em práticas pluri/multilaterais: o BRICS, o G20 e a COP. 

BRICS, G20, COP30

O BRICS, em versão revista, expandida e atualizada, concentrará, a partir de janeiro de 2024, cerca de 36% do PIB e 46% da população do mundo. Bem distribuído por diversas regiões geográficas – América Latina, África Subsaariana, Norte da África, Oriente Médio, Eurásia, Sul da Ásia e Ásia-Pacífico –, seu conjunto de onze membros faz inveja a qualquer bom jogador de War. As peças, afinal, combinam-se de tal forma que, no agregado, a aliança revisionista do Sul Global responde por quase inesgotáveis reservas energéticas, por um celeiro mundial de alimentos e por insuperável patrimônio ambiental. O BRICS tornou-se baliza incontornável.

Há, contudo, duas grandes questões com as quais o Brasil terá de lidar: a heterogeneidade paralisante do bloco, internamente; e o tensionamento que ele gera com velhos parceiros do Ocidente, externamente. O primeiro ponto traz por implicação a dificuldade de agir para além do simbólico. Ainda que se fale, com alguma recorrência, na construção de um sistema financeiro desdolarizado, um consenso parece distante. Há, de resto, resistências, abertas e veladas, ao excessivo protagonismo chinês. O segundo ponto, para país de vocação universalista como o Brasil, também pede cuidados, posto que não interessa nem um pouco a Brasília bloquear potenciais de cooperação com América do Norte e Europa.

O grupo das vinte maiores economias do mundo, sob a presidência rotativa do Brasil a partir de dezembro, reuniu-se em Nova Délhi para passar em revista a agenda e tentar chegar a acordos credíveis e implementáveis sobre a economia. Interessantemente, seu conjunto de membros congrega, em igual medida, representantes do novo BRICS e do G7. Mesmo entre os que não integram os dois grupamentos, há paridade entre o Sul Global (Indonésia, México, Turquia) e o Norte Global (Austrália, Coreia do Sul, União Europeia). Trata-se, no fim das contas, de uma instanciação fiel das fissuras da ordem mundial.

Durante o período em que ocupar a liderança do blocão fragmentário, Brasília buscará difundir perspectivas que, a um só tempo, sirvam ao interesse nacional e desviem-se de “bolas divididas”. Uma ênfase provável é o tema do combate às desigualdades; outra temática que gera menor fricção é o meio ambiente. De igual maneira, o Brasil e seus pares do Sul evitarão – como um vampiro foge do dente de alho – a espinhosa discussão sobre a guerra na Ucrânia. Não existe, aliás, tópico mais desagregador nas relações internacionais contemporâneas.

Abrigada sob o toldo das Nações Unidas, a Conferência Mundial das Partes (COP) é o momento em que o mundo para e discute, em cúpula de alto nível, a dramática mudança do clima. Em 2025, o encontro chegará à sua trigésima edição – e será realizado na maior potência verde do planeta, o Brasil, e justamente numa cidade, Belém, que nucleia o bioma amazônico. Será oportunidade única para sair da histórica posição defensiva e avançar uma visão brasileira sobre o assunto. Afinal, se existe dossiê temático em que o país sul-americano pode reclamar liderança, esse é o da governança ambiental global.

Brasília joga xadrez nos três tabuleiros, ao mesmo tempo e de forma coordenada, tentando atar as decisões alcançadas à nossa motivação diplomática: ao promover a expansão do BRICS, tenta alavancar a reforma do Conselho de Segurança da ONU; ao defender a reforma do Conselho, justifica-o com argumento ambiental – a necessidade de empoderar países “guardiães” de recursos ecológicos; ao tratar da proteção do meio ambiente, associa-a à temática do financiamento da “transição verde”. Em suma, é de uma só coisa, indissociável, que Lula e o Brasil estão a tratar.

Lula recebe uma muda de árvore em cerimônia no Bharat Mandapam, Plenário da Cúpula do G20. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação Presidência da Repúbica
Lula recebe uma muda de árvore do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, durante a Cúpula do G20.

Uma grande estratégia para o país?

Como já se disse anteriormente, o Brasil é país que – ao menos durante a última década – navegou sem rumo pelo mar revolto das relações internacionais. Parece chegado o momento de amarrar as pontas da política exterior e dar sentido lógico às ações estratégicas e táticas de diferentes naturezas. É óbvio que o mundo, esse objeto de análise tão complexo e imprevisível, impede que planos de longo prazo dos países não passem, periodicamente, por ajustes e revisões. Ainda assim, convém considerar como ponto de partida as cinco proposições abaixo:

1.     A ascensão do Sul Global já não pertence mais ao campo das especulações teóricas e filosóficas; ela aconteceu. Vide as estatísticas econômicas, geoestratégicas e político-diplomáticas em série histórica.

2.     A China já rivaliza com os Estados Unidos em distintos segmentos das relações internacionais (economia e tecnologia, sobretudo) e, mesmo que passe por turbulências, não se retirará do condomínio de potências globais nas próximas décadas.

3.     A Índia, terceira maior economia (em paridade de poder de compra) e maior população do mundo, além de contar com ogivas nucleares, será a próxima aquisição do time das superpotências. Parece condenada à grandeza.

4.     Dadas as configurações político-institucionais dos países que compõem o novo BRICS, suas lideranças ainda estarão em postos de comando pelos próximos vários anos. A possível exceção é a Argentina. Ou seja: haverá tempo para maturação de um projeto revisionista da ordem global.

5.     A crise climática, que ganha contornos cada dia mais severos e não admite subterfúgios protelatórios, permite ao Brasil lançar mão de seus “argumentos” – isto é, dos abundantes recursos hídricos, energéticos, florestais, alimentares e de biodiversidade de que dispõe.

Outras questões ainda deverão ser levadas em conta – como o padrão demográfico de países africanos e sul-asiáticos, a crescente força das dimensões cognitivas e axiológicas das relações internacionais (educação, ciência, tecnologia, inovação, religião, valores, cultura etc.), a implacável automação do mundo do trabalho e as graves ameaças à sobrevivência da humanidade (pandemias, desastres naturais, catástrofes engendradas por humanos ou humanoides, genocídios, etc.). Ninguém disse que seria fácil, não é mesmo? Todavia, depois de muito tempo a vagar, tem-se a sensação de que há marinheiro a segurar o timão da embarcação brasileira.

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