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Odebrecht e a criminalização da política exterior

Aquela modalidade de cooperação sul-sul acabou enriquecendo os que já eram ricos e aprofundando dinâmicas de captura do Estado e concentração de renda. Governos da região foram cúmplices na coreografia maligna

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#INTERNACIONAL 9 de jun. de 235 min de leitura
Visão geral da construção da Linha 5 do Metrô pela empresa brasileira Odebrecht em Caracas, em 18 de março de 2022. A Venezuela foi o segundo país a receber mais propinas da Odebrecht, cerca de 98 milhões de dólares segundo seu ex-presidente Marcelo Odebrecht, condenado a 19 anos de prisão. Foto: Federico Parra/AFP
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias9 de jun. de 235 min de leitura

Nas semanas em que a Operação Lava Jato volta ao noticiário – não exatamente pela porta da frente –, também se deu curiosa coincidência editorial: Emilio Odebrecht, patriarca da família cujos negócios estiveram no centro do alvo das investigações policiais da última década, publicou livro-denúncia sobre o caráter lesa-pátria do movimento capitaneado, desde Curitiba, por Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e seus "blue caps" do Ministério Público Federal.

Em Uma Guerra contra o Brasil, Emilio argumenta que, enquanto esteve ativa, a Operação Lava Jato ceifou centenas de milhares de empregos, inviabilizando a internacionalização do setor de serviços do país. A construção pesada, bastante competitiva no mercado global, foi coletivamente punida, o que favoreceu, em última análise, a concorrência estrangeira. Por interesses que iam da política eleitoral aos balancetes das firmas, uma lucrativa indústria de ultraje político teria sido erguida no Brasil.

De pai para filho

Nascido em clã abastado do norte do Brasil, Marcelo Odebrecht, filho de Emilio, logo iniciou trajetória empresarial. Depois de obter um diploma de bacharel em Engenharia, mudou-se para o Reino Unido e, depois, para os Estados Unidos. Queria ganhar experiência e conhecimento técnico em gestão para administrar os negócios bilionários da família. Depois disso, ele nunca mais olhou para trás. Aos 40 anos de idade, Marcelo assumiu a presidência da Odebrecht, então a maior construtora da América Latina. Uma década depois, estava condenado a passar 17 anos na cadeia.

Contudo, depois de dois longos anos atrás das grades, Marcelo decidiu delatar crimes empresariais. Denunciou qualquer político cuja campanha eleitoral sua empresa houvesse financiado por meios ilícitos. No Brasil, quase todos os partidos e líderes partidários se beneficiaram das generosas “doações” da Odebrecht ao longo dos anos. Um esquema oceânico de suborno e fraude, portanto, veio à tona, alcançando vários outros países da América Central e do Sul. Um terremoto para a política latino-americana, levando a prisões, fugas, suicídios.

A Odebrecht ficou proibida de participar, como concorrente, de editais por todo o continente. A empresa brasileira não podia ser contratada para projetos de infraestrutura pública em nenhum lugar do Peru, do Panamá ou do Equador. As acusações eram praticamente as mesmas nos três países: suborno a funcionários públicos e ganho de licitações por meio de fraudes. Na República Dominicana, manifestantes foram às ruas e protestaram contra o establishment político, quando o escândalo de corrupção – envolvendo a Odebrecht – se tornou público. Em Cuba, permaneceram sigilosos os documentos assinados pelas partes para a construção do porto de Mariel, o que levantaria suspeitas quanto à sua integridade.

Lula, Embaixador da Odebrecht?

Marcelo Odebrecht foi, num passado recente, um dos mais ferrenhos defensores da diplomacia presidencial de Lula. Entre 2013 e 2014, meses antes de ser preso em Curitiba, escreveu dois artigos de opinião para a Folha de S.Paulo, jornal mais lido do Brasil, defendendo maior envolvimento de Luiz Inácio Lula da Silva – e , da mesma forma, da então mandatária Dilma Rousseff – no estímulo à presença internacional do Brasil no mundo, por meio do apoio e adesão a missões comerciais no exterior.

Um primeiro texto, intitulado “Viaje mais, presidente”, foi concebido para rebater a onda de críticas ao ex-presidente do Brasil, segundo a qual palestras proferidas no exterior seriam a fachada de um complexo esquema de corrupção, sob os auspícios da Odebrecht. Os roteiros internacionais de Lula, o palestrante, incluíram não apenas nações latino-americanas, senão também países africanos de língua portuguesa, como Angola e Guiné-Bissau. Em uma segunda tentativa de poupar os presidentes brasileiros dos julgamentos duros da mídia, bem como da oposição no Congresso, Marcelo escreveu uma ode a Mariel, o porto cubano parcialmente financiado com dinheiro público brasileiro. O ponto principal de seu artigo era que o Brasil precisava financiar cada vez mais projetos de infraestrutura, com vistas a desempenhar a liderança na América Latina e no mundo.

No meio do caminho, como já se sabe, houve contratempos. A diplomacia presidencial – uma tendência contemporânea personificada pelo próprio Lula – quedou confundida com o tráfico de influência. Os ministérios de relações exteriores de todo o continente foram responsabilizados por abrir caminho para negócios estatais suspeitos. Promoção comercial e concessão de empréstimos internacionais tornaram-se senhas no debate político para crimes contra o patrimônio público. A América Latina, infelizmente, seguiu alimentando alguns de seus mais arraigados estigmas.

O presidente da construtora Odebrecht, Marcelo Odebrecht, fala durante audiência da comissão parlamentar do inquérito da Petrobras, na Justiça Federal, em Curitiba, em 1º de setembro de 2015. Foto: Andrey Heuler/AFP
O presidente da construtora Odebrecht, Marcelo Odebrecht, fala durante audiência da comissão parlamentar do inquérito da Petrobras, na Justiça Federal, em Curitiba, em 1º de setembro de 2015. Foto: Andrey Heuler/AFP

A cara feia da cooperação sul-sul

A Odebrecht foi um cavalo de Troia que se infiltrou nos sistemas políticos e reescreveu as regras da competição partidária. A descredibilização do jogo eleitoral que se seguiu terá sido, muito provavelmente, um dos fatores responsáveis pela avalanche antipolítica na América Latina e, no Brasil, pelo experimento ultradireitista de Jair Bolsonaro. Mas é preciso dizer a verdade: a Odebrecht nunca esteve sozinha. Outras empresas e empresários – de setores tão diversos como engenharia naval, agricultura, petróleo e química fina, entre outros – lucraram, por muitos e muitos anos, da mesma maneira.

Muito diferentemente da propaganda oficial da esquerda, aquela cooperação sul-sul acabou enriquecendo os que já eram ricos e aprofundando dinâmicas de captura do Estado e concentração de renda. Os governos da região, sob a "Onda Rosa", foram cúmplices perfeitos na coreografia maligna, em que pesem os hoje bem conhecidos abusos e manipulações patrocinados pela brasileira Lava Jato e suas congêneres.

* Dawisson Belém Lopes é professor de política internacional da UFMG.

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