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Vini Jr. e o racismo como questão de Estado

Cerca de 4 milhões de brasileiros tentam se inserir em comunidades estrangeiras, enfrentando hostilidades indizíveis – na mescla perversa da xenofobia com o racismo. Ao colocar-se como escudo, Vini Jr. também protegeu seus compatriotas

Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias
#INTERNACIONAL23 de jun. de 234 min de leitura
O atacante Vinicius Junior durante o amistoso internacional entre Brasil e Guiné, no Estádio RCDE em Cornella de Llobregat, perto de Barcelona, ​​Espanha, em 17 de junho de 2023. Foto: Pau Barrena/AFP
Dawisson Belém Lopes, para Headline Ideias23 de jun. de 234 min de leitura

Enquanto o Brasil fazia turnê futebolística pela Península Ibérica, vestindo-se de preto para enfrentar equipes africanas em amistosos oficiais, o tema de fundo era o racismo no esporte. Nomeadamente, a grotesca série de agressões sofridas, em solo espanhol, pelo craque brasileiro do Real Madrid, Vinícius Jr. – e a reação altiva do atleta, que se seguiu.

Nada de novo sob o sol, alguns dirão. Eu discordarei convictamente. Há um aspecto novidadeiro na atual mobilização: a disposição de Vini Jr. para resistir à barbárie. Por décadas e décadas, testemunhamos respostas complacentes sempre que um episódio de flagrante injúria racial ou de racismo com futebolistas se desenrolava diante dos nossos olhos. Desta vez, não.

Vini Jr., aos 22 anos de vida, liderou a resistência. Peitou os donos do dinheiro na Liga espanhola. Galvanizou apoios de outros esportistas, da imprensa especializada, do público engajado do futebol, no Brasil e fora dele. Bem assessorado na comunicação, fez todos olharem para o drama dos que sofrem violência racial em bases cotidianas. Até o Cristo Redentor se enegreceu para abraçar o gigante franzino dos dribles desconcertantes.

Racismo como questão de Estado

É relevante entender a magnitude do gesto de Vinícius. O “basta!” criou uma cunha no tempo. Existe o antes e o depois da partida entre Real Madrid e Valencia, ocorrida em maio de 2023. A partir de agora, qualquer criminoso que ousar imitar um macaco ou arremessar bananas na cancha será percebido – e tratado – diferentemente. As equipes profissionais também ficarão mais zelosas, pois poderão sofrer com estigmatização e punições esportivas. Vini Jr. subiu o preço da atrocidade.

O movimento suscitado pelo jogador do Real Madrid, contudo, chega bem além dos gramados e arquibancadas de futebol. Imagine você a importância de tal ação antirracista para a enorme diáspora brasileira no exterior. Cerca de 4 milhões de brasileiros, segundo os números oficiais da ONU, tentam se inserir social e economicamente em diversas comunidades políticas mundo afora, enfrentando hostilidades indizíveis – na mescla perversa de xenofobia com racismo. Ao colocar-se como escudo, Vini Jr. também protegeu os seus compatriotas.

Com sociedade majoritariamente negra – 56% de pretos e pardos, conforme IBGE –, racismo é questão existencial para o Estado brasileiro. Nossa constituição criminaliza o racismo, tomando-o como ilícito inafiançável. Nas relações exteriores, repudia-se veementemente o racismo. No atual governo, não existe margem para ações racistas. O affair Vini Jr. tem o condão de despertar-nos da sonolência profunda e, de uma vez por todas, fazer da luta antirracista um traço efetivo de nossa presença internacional.

A política externa antirracista

Uma política externa antirracista para o Brasil passaria, naturalmente, pela elevação do número de mulheres e homens negros no primeiro time da nossa representação internacional. No país em que só se aboliu legalmente a escravização de humanos em 1888, faltam pretos e pardos no serviço diplomático. Sintomaticamente, o primeiro homem negro a chegar ao topo da carreira diplomática, quase dois séculos após a fundação da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros do Império, foi Benedicto Fonseca Filho, em 2010.

Além da imagem internacional ostensivamente branca, o Brasil é país que falhou em se aproximar da África, continente negro, nas suas relações exteriores. Mesmo com todos os laços genéticos que nos unem, escamoteou-se sistematicamente tal conexão diplomática e histórica. Com raros momentos de retomada ao longo dos séculos XX e XXI – ora sob os militares, ora sob os governos de esquerda –, prevaleceu o descaso da nossa elite tomadora de decisões. Um projeto de política externa antirracista requereria, por óbvio, a arquitetura de uma nova relação entre brasileiros e africanos.

Por fim, se política externa é projeção do país, caberia tornar o Brasil estruturalmente menos racista. Se o problema tem repercussão para fora, ele está bem arraigado dentro do território. Extirpar todas as formas de discriminação e preconceito de base racial é objetivo primordial. O momento parece convidativo para avançar algumas casas no jogo. Compete ao chefe de Estado promover ampla campanha antirracista, apontando o dedo para quem promova ou perpetue a prática. O momentum ensejado pela coragem do jovem Vinícius pode não se repetir tão cedo.

* Dawisson Belém Lopes é professor de política internacional da UFMG.

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